Quem
nunca ouviu falar da obra de arte “Fonte”, de Marcel Duchamp? Ouvir falar,
muita gente ouviu, mas entender o seu propósito, sentido e sua importância no
mundo das artes…hum… aí complica…
Por
que raios Duchamp foi até o nº 118 da quinta avenida, acompanhado de seus
amigos Joseph Stella e Walter Arensberg, no estabelecimento comercial de J.L.
Mott, um especialista em encanamentos e compra um mictório modelo Bedfordshire??
A
resposta encontrei lendo o livro Isso é
Arte?, de Wil Gompertz e vou partilhar com vcs este conhecimento que
particularmente mudou e muito minha cabecinha!!! Confesso que sempre me
deparava com “Fonte” em diversas publicações, livros, tirinhas, etc etc etc e
não sabia o que era “aquilo”. Era uma obra familiar, ou melhor, um objeto
familiar, mas totalmente descontextualizado para mim! Como se tivesse um
mictório perdido em meio as minhas lembranças das obras de arte de Monet, Rembrand, Rodin, Degas, Caravaggio,
Man Ray, Joseph Stella, Joel Piterwithikin, Irina Ionesco… entre meus parcos conhecimentos artísticos.
Talvez o objeto estivesse tão aceito internamente em mim, que nunca pensei em
questioná-lo, compreendê-lo. Aliás, não só isso, mas vulgarizado, a ponto de
passar imperceptível aos meus questionamentos, como se fosse mais um objeto
qualquer disposto em minha mesa de trabalho. Que horror admitir isso!!!! Meu
Deus!! A caveira de Duchamp deve estar se chacoalhando - e muito! - com esta
minha confissão! Não sei se de pesar escandaloso, mas provavelmente de rir,
pois ao contrário de muitas pessoas, não olhava para Fonte com a seriedade e reverência que ela causa hoje em nós,
filhos da contemporaneidade.
Não
é porque determinada obra de arte é familiar aos nosso olhos, que
verdadeiramente a conhecemos e introjetamos seu sentido/propósito a ponto dela
causar uma metanóia! Pra mim é isso: arte bem digerida causa metanóia. Ou no
mínimo certa emoção!
Confesso
que depois que aprendi que Fonte
levou o conceito readymade num nível confrontador, segundo as próprias
palavras de Gompertz, nunca mais vi um objeto como via antes, inclusive faço
uma releitura mental de vários readymade que
encontrei ao longo dos meus 36 anos e nunca me dei conta!
Então
vamos compreender porque Fonte se
tornou a obra de arte mais influente criada no seculo XX:
Primeiramente,
é preciso nos localizar na linha do tempo: 2 de abril de 1917, o presidente
norte-americano Woodrow Wilson exorta o
Congresso a fazer uma declaração formal de guerra à Alemanha, um ano antes de
acabar a Primeira Guerra mundial. Nasce Ella Fitzgerald e morre Bufalo Bill, Cleopatra, de J. Gordon
Edwards, com Theda Bara é estreado nos cinemas. Em 13 de maio ocorre a
primeira de seis aparições de Nossa Senhora a três crianças, em Fátima -
Portugal. Aqui em terras brasilis, a IBM abre a sua primeira
filial na América
Latina, Pixinguinha e João de Barro
compõem Carinhoso e em praticamente no resto do mundo… Guerra.
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Em
1917, nos Estados Unidos, o conservadorismo da National Academy of Design era
asfixiante para o desenvolvimento da arte moderna em sua plenitude. Até aquele momento, o meio – tela mármore,
madeira ou pedra – havia ditado o modo como o artista iria ou poderia abordar a
feiura de uma obra. O meio sempre vinha primeiro, e só depois era permitido ao
artista projetar suas idéias sobre ele, como pintura, escultura ou desenho.
O
francês Marcel Duchamp queria inverter isso, considerava o meio secundário: o primordial era a idéia, só depois de
ter escolhido um conceito artista estava apto a escolher um meio que lhe
permitisse expressar sua idéia de maneira bem sucedida. E se isso significasse
usar um mictório de porcelana, tudo bem!
Outra
opinião muito disseminada – até os dias de hoje… por incrível que pareça… - que
Duchamp queria desmascarar como falsa e considerava um disparate: a de que
artistas são de certo modo uma forma mais elevada de vida humana. Que merecem o
status elevado que a sociedade lhes confere por supostamente possuírem
inteligencia, perspicácia e sabedoria exepcionais. “Os artistas se levam e são
levados a sério demais! (momento “eu estou amando muito Duchamp!!!” Momento
“como não achá-lo excepcional mediante tal perspicácia!?? Momento “fiquei
confusa”.)
E
não pára por aí!!! Ele queria não só desafiar o establishment artístico do
país, como testar a fidelidade ao ideal da Sociedade dos Artistas Independentes,
o qual ele fazia parte como diretor e membro do comitê organizador!
Tá,
ir contra a voz autoritária da National Academy of Design e suas idéias
estreitas e tacanhas, ok, compreendido. Mas… pra que desafiar a Sociedade dos
Artistas Independentes, da qual ele era membro???
A
Sociedade dos Artistas Independentes tinha como propósito combater a National
Academy of Design com um conjunto novo de princípios, liberal e preogressista: declarava
que qualquer artista poderia se tornar membro da Sociedade a preço de 1 dólar,
e que qualquer artista membro poderia inscrever duas obras para a Exposição dos
Artistas Independentes, contando que pagasse a taxa adicional de 5 dólares por
arte.
Ele
estava provocando os colegas diretores e o regulamento da organização, (que
ajudara a redigir!), desafiando-os a serem fiéis ao ideal que haviam
coletivamente estabelecido!


Marcel
Duchamp tinha uma idéia em que já vinha trabalhado há alguns anos, desde que
prendera a roda de uma bicicleta e seu garfo dianteiro a um banco em seu ateliê
ainda na França. Ao chegar aos Estados Unidos, comprou uma pá para neve e gravou uma inscrição sobre ela antes de
pendurá-la no teto pelo cabo. Assinou “from”e não “by” Marcel Duchamp, deixando
bastante claro seu papel no processo: aquilo era uma idéia “vinda de” um
artista em contraposição a uma obra de arte “produzida por” um artista. Chamou esta nova
forma de fazer arte de “readymade”:
uma escultura já pronta.
Ele
acreditava ter inventado uma nova forma de escultura: uma em que o artista
podia selecionar qualquer objeto produzido em massa sem nenhum mérito estético
óbvio e, libertando-o de sua finalidade funcional - em outras palavras
tornando-o inútil -, dando-lhe um nome e mudando o contexto e o angulo do qual
seria visto normalmente, transformando-o numa obra de arte de fato. Foi isso
que Marcel Duchamp fez com o bendito mictório Bedfordshire!
Após
comprá-lo, leva-o a seu ateliê e assina-o numa posição em que este parece estar
de cabeça para baixo. Entretanto, não assina seu nome, e sim o pseudonimo “R.
Mutt 1917” e o intitula de Fonte. Voilà!!! Está pronto o readymade mais importante da história da arte!!!
A
escolha do mictório está repleta de simbolismos complexos assim como a mente de
Duchamp, o caráter erótico – aspecto que
ele explorou vastamente em suas obras ao longo da vida, o questionamento da
própria noção do que constituía uma obra de arte tal como decretada por
acadêmicos e críticos, que via como árbitros autoescolhidos e em geral não
qualificados do gosto. Cabia ao artista decidir o quera e não era um a obra
de arte! Ou seja, se um artista dissesse que tal coisa era uma obra de
arte, tendo interferido em seu contexto e significado, ela era uma obra
de arte! Princípio fundamental do readymade!
A
idéia era simples de compreender, mas causaria uma revolução no mundo das
artes.

Já
o “R.”do pseudônimo R. Mutt,
representa Richard, um coloquialismo francês para “Sacos de dinheiro”.
Chegou
o grande dia, o de entregar a Fonte
no saguão do salão de exposições. A reação imediata foi nojo e consternação, a
peça foi considerada ofensiva e vulgar por se tratar de mictório, um tópico não
apropriado para a discussão entre a classe média puritada dos Estados Unidos. Além
dissso, a diretoria que condenava a obra, achava que sr. R. Mutt estava zombamdo deles! E estava!
Mesmo
com os 6 dólares pagos a Sociedade dos Artistas Independentes, Fonte foi recusada e não pode ser
exposta, mesmo sendo defendida por Duchamp, Arensberg e outros diretores
cientes de sua proveniencia de propósito ardorosamente. O time de Duchamp
renunciou o comitê, Fonte jamais foi vista em público e reza a lenda que um dos
membros enojados da Sociedade havia destruído a peça para acabar com o dilema
“expôr ou não”.
Eis
que… o grande poder das idéias é que não é possível desinventá-las! O famoso
fotógrafo Alfred Stieglitz fotografou Fonte
(ou fez uma reprodução, que posteriormente desapareceu também!), ato de extrema
importância para a história do mundo das artes, pois Stieglitz era dono de uma
influente galeria de arte em Manhattan, além de ser um dos fotógrafos mais
respeitados do mundo!!!
A
obra tinha sido edossada pelo mundo artístico de vanguarda como uma peça de
arte legítima, portanto merecedora de ser documentada como tal por uma
importante galeria e por um grande fotógrafo reverenciado. Além disso tudo, a
fotografia é a prova documental da existência do objeto!
Fonte
podia ser despedaçada inúmeras vezes, mas bastava algém voltar a loja de
mictórios e comprar uma peça e assinar, que pronto, cada um poderia ter sua
própria Fonte! De fato isso
aconteceu, 15 exemplares de Fonte foram endossados por Duchamp e podem ser
encontrados em coleções espalhadas pelo mundo.
Duchamp
cumpriu seu propósito, o de ser o responsável direto do debate eterno “isso é arte?” . Ele acreditava que o artista
tinha a mesma função que o filósofo, o de afastar-se do mundo e tentar
compreende-lo ou comentá-lo por meio de apresentação de idéias sem nenhum
propósito funcional além de si mesmas. O trabalho do artista não era
proporcionar prazer estético, para isso que existem os designers.
Duchamp
emergiu da história da arte moderna, ele não a iniciou, pois ela começara antes
mesmo que ele nascesse, no século XIX, quando eventos mundiais conspiraram para
fazer Paris o lugar intectualmente mais estimulante do planeta, entretanto, com Fonte,
Duchamp redefiniu o que era arte e o que poderia ser.